quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Diferença entre apostasia e novo entendimento



Uma prova em como o pensamento religioso é subtilmente pervertido, é a acusação por parte da ortodoxia sobre os que a contestam. A organização religiosa representada pelo escalão superior da sua hierarquia, assume-se como o detentor legítimo da ‘verdade’ e só ele é legitimado para introduzir qualquer alteração. Qualquer proposta sequer de reflexão vinda dos escalões mais baixos é considerada perigosa e olhada com suspeição.

A igreja católica está cheia de exemplos desses, por exemplo, quando condenou Giordano Bruno[1] à fogueira, apenas porque este defendia a pluralidade de mundos, ou de forma ainda mais violenta com o massacre dos cátaros[2].

De modo geral a religião organizada é profundamente alérgica a qualquer ideia que entenda como contrária à sua! Sim, é tão preocupantemente doentio que tudo depende de uma percepção daquilo que entende como contrário! De facto, uma ideia que levou alguém a ser considerado herege ou apóstata, pode nos anos seguintes, ser considerada perfeitamente inocente, ou pelo menos não ceifar a vida de ninguém. Por exemplo, qualquer católico pode sem medo de ser excomungado dizer que acredita na pluralidade de mundos habitados.

Seria contudo muita ingenuidade nossa, pensar que o pensamento religioso evoluiu. Pelo contrário ele apenas está submerso pronto a despontar a qualquer oportunidade mais favorável. O pensamento religioso é por natureza intolerante a uma ideia contrária e tem sempre tendências hegemónicas. Basta pensar na própria Bíblia que afiança em Efésios 4:5, 6 de que há “…uma só fé, um só baptismo, um só Deus…”

Onde vemos hoje sinais da intransigência do pensamento religioso e da sua intolerância face a qualquer ideia contrária? Se isso parece atenuado ou ‘submerso’ no seio das grandes religiões, está bem vivo no fundamentalismo cristão, fenómeno fortemente americano e que por hegemonia cultural do Império tem sido espalhado globalmente. A intransigência sente-se agudamente com a proposta de queima do Corão[3] ou por acções homofóbicas doentias[4].

E se estas expressões são claras e evidentes por si mesmas, outras há que primam por uma subtileza incomparável, mas não deixam de ser igualmente perniciosas. Mais uma vez me reporto às Testemunhas de Jeová e faço-o porque o seu combate aquilo que entendem ser apostasia, cobra um pesado tributo aos supostos apóstatas. As Testemunhas costumam expulsar dentre a sua comunidade aqueles que não aceitam a ortodoxia do movimento. Mesmo que o apóstata consiga provar o seu entendimento com base na exegese bíblica[5]! Isto parece contraditório com a sua própria posição oficial que diz reconhecer a autoridade superior da Bíblia. Talvez o que queiram realmente dizer, seja que aceitam como autoridade superior a sua interpretação da Bíblia. É um exercício muito comum em todas as religiões e em particular das judaico-cristãs…

Mas o caricato nas Testemunhas de Jeová é que a sua interpretação de apostasia pode coincidir na prática com aquilo que denominam ‘novo entendimento’. Isto é, se numa altura certa interpretação foi considerada apóstata e até levou à expulsão dos seus membros que a defendiam na altura, num passe de mágica intelectual, a mesma interpretação passa a ser louvada como um ‘novo entendimento’ e aceite como inspiração divina que gradualmente conduziu a uma maior ‘luz’. Vou abordar nessa perspectiva dois casos: O do Serviço Cívico e o entendimento sobre o significado do ‘fermento’. Contudo poderia citar pelo menos mais meia-dúzia de situações.

Serviço Cívico
Elogiavelmente as Testemunhas de Jeová mantêm uma posição de neutralidade em relação aos assuntos políticos do mundo que as faz negar-se intransigentemente a participar no esforço de guerra de qualquer nação. Não são pacifistas, pois acham legítimo que Deus trave guerra com os seus inimigos, contudo recusam-se a matar qualquer outro humano. Assim tem sofrido bastante por esta sua atitude corajosa, sendo que nalguns países muitos ainda estão presos por recusarem a sua participação no exército. Alguns foram mesmo mortos por esta sua atitude. Felizmente o mundo evolui e muitos governos legislaram em favor destas posturas e aboliram a obrigação da prestação de serviço militar ou criaram serviço substituto, normalmente denominado de ‘serviço cívico’. Face a esta mudança, seria de esperar que as Testemunhas a considerassem muito bem-vinda. Mas não. Encararam o ‘serviço cívico’ como equivalente a prestar serviço militar! Isto abriu uma incompreensão em primeiro lugar da parte dos juízes responsáveis por conceder o estatuto de ‘objector de consciência’ que não entendiam a recusa de alguns mancebos Testemunhas em prestar ‘serviço cívico’. E por parte de alguns mancebos Testemunhas uma incompreensão como justificar a sua recusa, visto que se aceitassem não viam nenhuma violação de nenhum princípio bíblico!

Qual foi o resultado? Alguns mancebos foram parar à prisão por se recusarem aceitar serviço cívico e outros foram desassociados pela organização porque aceitaram. Em qualquer dos casos, é bom que se note, houve prejuízo para os mancebos. E tudo porquê? Por uma postura rígida e intransigente da organização, uma espécie de braço de ferro com o poder político.

Os jovens que haviam aceite o serviço cívico, foram todos desassociados pela organização. Esta é a medida mais dura que têm para os membros que consideram apóstatas ou prevaricadores. Neste caso, consideraram que ao não aceitarem a orientação da organização neste particular, tinham apostatado. (Há aqui envolvido um conjunto de tecnicalidades, que não quero desenvolver…)

Algum tempo depois[6], saiu um ‘novo entendimento’ que afirmava que agora o ‘serviço cívico’ podia ser aceite, pois havia base bíblica para isso! Será que face a esse novo entendimento os que anteriormente haviam sido desassociados por terem entendido isso, antes da organização, foram de imediato reintegrados? Não! De modo nenhum, ainda continuaram a ser olhados como elementos ‘fracos’ de espiritualidade duvidosa.

E os outros que foram com base no velho entendimento presos, foi-lhes pedida desculpa por terem passado por essa provação? De modo nenhum! A organização considerou que nenhum destes foi prejudicado! Felizmente, tanto quanto sei, nenhum foi fuzilado por recusar ‘serviço cívico’, se o tivesse sido, a organização teria sangue nas mãos neste momento!

Fermento
O segundo caso é mais recente e prende-se com um problema de exegese. As Testemunhas de Jeová defendiam que quando a Bíblia se refere a fermento, este deve sempre ser encarado como negativo, ou seja traduz a ideia de corrupção, de algo impuro ou aviltado. Contudo, recentemente houve um ‘novo entendimento’[7] e foi reconhecido que nem sempre isso ocorre e que algumas vezes apenas se refere a um processo natural.

O problema é que isso era uma velha quezília de 30 anos[8], quando J.H.Paton defendeu a mesmíssima posição e por esse ‘crime’ sofreu a desassociação! Será que a sua memória foi reabilitada? Deus nos livre! A organização é demasiada ‘perfeita’ para ter que pedir desculpas ou admitir que errou.

Mas o que tudo isso tem a ver com o tema? Simplesmente o seguinte: Quando o exercício de exegese vem de um simples membro é apostasia, quando vem da Organização é ‘divinamente inspirado’ e deve ser aceite sem reservas por todos!

Assim o que determina se alguma coisa há-de ser apostasia ou ‘novo entendimento’ é apenas o acto arbitrário de quem o classifica!

Afinal depende apenas de que lado se está da linha…




[1] http://pt.wikipedia.org/wiki/Giordano_Bruno
[2] http://pt.wikipedia.org/wiki/Cruzada_albigense
[3]http://www.donodanoticia.com/pastor-queima-alcorao-nos-eua-gera-protestos-no-afeganistao-104007.html
[4] http://www.msnbc.msn.com/id/9102443/ns/us_news-life/t/anti-gay-church-protests-soldiers-funerals/
[5] http://pt.wikipedia.org/wiki/Exegese
[6] “A Sentinela” de 1/Maio/1996 p.20
[7] “A Sentinela” de 15/Julho/2008 nota de rodapé na página 17
[8] “A Sentinela” de 1/Junho/1976 p.335 a 348

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