domingo, 18 de abril de 2021

Essência

 

Photo by Paweł Czerwiński on Unsplash

 

As religiões são diversas também naquilo que consideram como essencial, como o núcleo duro, o cerne, a pedra de toque da sua essência. Uns consideram que é a prática, outros a sua doutrina, outros a forma como edificam o individuo, outros o ritual. Mesmo entre as religiões que dizem seguir a Cristo, esta variedade na essência é notória. Assim alguns acham que a Escritura sendo importante, não é o mais importante, porque a Escritura embora essencial, chega-nos pela interpretação dos devotos, dos santos. Assim a Escritura e a tradição são o caminho. Outros procuram mais as emoções, os sentimentos, numa espécie de comunhão com Deus, mais pessoal e menos literata, donde as Escrituras são o menos importante, pois é a experiência pessoal o mais importante. Há aqui certamente algum contato com o gnosticismo, mas reduzir simplesmente assim, não capta a realidade.

Qual é o melhor?

Alguns dizem que o mais importante é a Verdade. Talvez até se respaldem nas palavras das Escrituras atribuídas ao próprio Cristo quando disse a Pilatos: “Para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade.” [1].

Portanto alguns acham que não há nada mais importante do que a Verdade. Também acham que esta verdade se encontra nas Escrituras porque estas são a Palavra de Deus! [2]

Mas esta paixão pela Verdade como essência do cristianismo é eivada de escolhos e problemas. Curiosamente esta apetência pela verdade, estas palavras do Cristo em especial, apenas encontraram eco no evangelho de João, o mais tardio a ser escrito, o mais filosófico, talvez afinal o mais afastado do próprio Cristo.

O que era importante para Cristo?

Alguma verdade doutrinária? Seria difícil, pois de alguma forma ele reescreveu a verdade ao reinterpretar as Escrituras Hebraicas. Isso é claramente visível na sua interpretação sobre o cumprimento do Sábado. Em termos doutrinais não se pode esquecer que uma das causas do exílio judaico em Babilônia foi o não cumprimento do sábado pelos israelitas! No pós-exílio judeus zelosos vão cumprir escrupulosamente o sábado; afinal aprenderam a lição!

Mas este zelo religioso bateu algumas vezes na falta de misericórdia! Por isso Jesus bate num ponto essencial ao afirmar: “O sábado veio à existência por causa do homem, e não o homem por causa do sábado;” [3]

Portanto resta a interrogação: O que é mais importante? Alguns insistirão que a Verdade é importante. Não estou tão convencido que esse seja o ponto central do cristianismo. Os judeus não se preocuparam muito com dogmatismos, encarando a Verdade, como um processo dinâmico e dialético. Acho que têm razão.

Mas creio que o Cristo disse o que era mais importante. A Verdade essencial para Ele e mais importante era o homem!

E o que é importante para o homem? Para que precisamos de Deus afinal? Tudo o que fazemos mesmo quando não acertamos, é uma tentativa, para sermos felizes. Sim, a felicidade do Homem é realmente o essencial. Se não o fosse, porque teria o Cristo feito um discurso inteiro apenas falando sobre o que nos pode fazer felizes? [4]. Essa felicidade humana conforme se depreende da continuação do sermão do monte, só é alcançável pela prática, pela realização do bem sem olhar a quem, o que implica incluir até os inimigos [5] e sempre de uma forma pró-ativa [6].
Todo o sermão do monte é um manual de como ser feliz, de evitar as armadilhas que nos podem retirar desse caminho e cheio de conselhos práticos para o alcançar.

[1] João 18:37

[2] João 17:17

[3] Marcos 32:27

[4] Mateus cap. 5, 6 e 7

[5] Mateus 5:44

[6] Mateus 7:12

 

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

A atração dos fundamentalismos



De um ponto de vista psicológico o fundamentalismo é tranquilizador. Nos fundamentalismos só há certezas, o que é necessariamente reconfortante. Num mundo que se altera constantemente, onde já não parece haver absolutos, o fundamentalismo atrai reforçando a ideia dos valores eternos, permanentes, absolutos. É o domínio reconfortante para o homem-criança, que sente saudade da infância, quando o pai lhe dava a mão e o ajudava a atravessar a estrada, protegendo-o dos perigos.


Nos fundamentalismos ao contrário de uma posição racional e científica, a dúvida não é motor da curiosidade, estímulo de saber mais. Não, a dúvida é cristalizada, encapsulada pelo dogmatismo, que converte todas as dúvidas em certezas. Uma forma de ver o mundo infantilizada, onde tudo tem o seu lugar. Esta cristalização da dúvida em certeza absoluta -- dogma -- contém a raiz da violência sectária, da que vê o outro não com curiosidade, mas com antagonismo, um antagonismo que pode derivar em violência, num imperativo moral [1] se bem que enviesado. A violência é o esforço por manter uma ordem moral. Pode parecer um paradoxo, mas realmente as relações humanas são um conjunto de paradoxos. Portanto, é natural que durante uma situação psicológica de fragilidade, alguém se sinta atraído a uma ideologia fundamentalista, autoritária. O regresso à infância tranquilizadora, ou até mesmo ao seio materno onde era possível um sono tranquilo.


O impedimento do questionamento, impede a introdução de perturbações e igual a uma criança, não lhe exige o esforço de uma resposta. Porque às crianças não se espera que tenham respostas sobre os mistérios do mundo. O não saber, o desconhecimento é um perigo. E sem perguntas há menos perigos. Face ao perigo o cérebro primário o da luta ou fuga, a primeira reação do animal assustado seja a fuga para o seu território, onde se sente tranquilo. Não é apenas o gato que assustado corre para o seu território mesmo que esta fuga o faça atravessar a estrada onde correrá o risco de ser colhido por um automóvel. O cérebro das lutas e das fugas não é racional, é imediato, brusco nas decisões. Nos fundamentalismos ao contrário de uma posição racional e científica, a dúvida é inútil. Ela é cristalizada, encapsulada pelo dogmatismo, que converte todas as dúvidas em certezas, disparadas com a brusquidão das decisões instintivas, imperativos arcaicos do primado da sobrevivência, ditames do cérebro primitivo fabricado por uma evolução com base no mecanismo da sobrevivência do mais apto. Ou apenas do mais sortudo, que o aprendizado fez-se por tentativa-erro.


É o conforto dos ignorantes, a ilusão de sabedoria para os estúpidos e campo de domínio dos psicopatas que dão aí vazão aos seus instintos manipuladores. É também campo dos sado-masoquistas com sexualidade mal resolvida. É o domínio da pedofilia, que perverte o afeto numa relação de poder. É de facto por isso que todas as ditaduras são semelhantes, apesar de todas se revestirem de boas intenções. Mas, como sempre, não são as ideias que fazem os homens, são os homens que fazem as ideias e se servem delas para justificar o que são.


Paralelamente assim como se busca o dogmatismo que oferece certezas, também se vai buscar a figura do pai severo, o que disciplina, coloca ordem, mesmo que esta seja arbitrária e nesse sentido autoritária, porque se quer acreditar que o universo rola da mesma maneira. Há que acreditar que tem sentido, que a sua marcha obedece à vontade de uma entidade qualquer, que há sempre alguém responsável, como um Deus benévolo, ou um Diabo perverso. É preciso impedir o mal e conjurar o bem. É preciso fugir da tentação e ser obediente. É necessária uma barreira, uma proibição, entre o nosso desejo e o que deve ser feito, com o risco que o mundo deixe de funcionar. Um ritual que mantenha o cosmos em ordem.


A criança, não precisa compreender a proibição, esta é-lhe imposta. É a essa segurança da infância em que uma confiança incondicional garantia que as ordens do pai e a obediência incondicional a elas, fossem percebidas como um benefício, uma proteção. É esta tranquilidade sem racionalidade, esta infantilização, este regresso ao tempo em que um ser severo mas benevolente zelava pelos seus interesses a que o adulto pretende regressar ao mergulhar em ideologias fundamentalistas, absolutistas [2]. Não é diferente com os ressurgimentos de ideologias radicais em especial no espectro mais à direita. Os latidos que enviam às ovelhas acantonadas nos seus redis batem sempre nas inseguranças do rebanho, inseguranças reais ou imaginárias e muitas vezes fabricadas por aqueles que pretendem beneficiar-se à custa das inseguranças dos outros. Afinal em terra de cegos quem tem um olho é rei.


A violência só acaba quando a comunidade considerar que ela não é aceitável. Por isso são perigosos os discursos de ódio, o alimentar daquilo que nos separa e torna os “outros” diferentes de “nós”. Os populismos crescem acentuando essas linhas de separação, nutrem-se delas, criam inimigos, precisam deles se hão-de afirmar-se. E prometem sempre segurança. Os preconceitos, são ideias que procuram criar limites, barreiras, entre algum “nós” e os “outros”. Por isso as ideologias fundamentalistas, e elas não se encontram apenas à direita, mas são mais comuns aí, têm demasiados preconceitos, criando em volta dos que as aceitam, barreiras, cercados, redis. Mesmo que em si mesmas essas ideias sejam inócuas, os preconceitos são sempre vazios, mas enchem-se de ficções que os sustentam. O racismo existe, mesmo que o conceito de raça não tenha fundamento. A minha raça é sempre melhor que a tua, mesmo que não seja possível definir “raça”! Apesar de não me interessar com quem o outro fornica, serei contra os homossexuais, apenas porque não quero ser como eles. Mas acaso sou obrigado? Ou não estará aí apenas o medo, o enorme desconforto de saber que afinal, posso ser como eles? O capitalismo é o melhor sistema económico do mundo, porque tenho medo que a alternativa me tire algo que não tenho. [3]


Saber que o mundo tem ordem, regras, que funciona como um relógio divino é a tranquilidade que os fundamentalismos fornecem. Um mundo simples de entender, porque sim, porque é assim que tem de ser. Um mundo infantil, que se pode contar e explicar às crianças que se contentam com histórias simples. Um mundo que não muda e porque não muda, não nos pode assustar.


Sim, a base de aceitação de qualquer fundamentalismo reside no medo.


[1] https://aeon.co/essays/people-resort-to-violence-because-their-moral-codes-demand-it

[2] http://www.alexandrastein.com/uploads/2/8/0/1/28010027/cults_final_ttsep16.pdf

[3] https://eand.co/the-age-of-disintegration-e1dccabd69b2

sábado, 19 de maio de 2018

Considerações sobre o pensamento de Kant


Kant, foi “amplamente considerado como o principal filósofo da era moderna”[1], que se situa no “final da Idade Média e se prolonga até à Idade das Revoluções no século XVIII“ [2]. O que segue são apenas alguns apontamentos meus sobre o seu pensamento e não têm qualquer veleidade para além disso mesmo. A preocupação com Kant é que este acreditava que "A passagem gradual da fé eclesiástica ao domínio exclusivo da pura fé religiosa constitui a aproximação do reino de Deus". E todas as religiões de uma forma ou de outra se declaram aproximações do reino de Deus. Assim urge considerar Kant.

Animais também podem ser racionais e ter senso de justiça. O racionalismo de Kant nega aos animais essa possibilidade de terem moral.

O livre arbítrio em Kant torna-se desnecessário já que duas entidades racionais deveriam por força confluir na mesma moral. O livre arbítrio é a pedra-de-toque de ser livre. Não alguma abstrata construção racional.

Todo o indivíduo é soberano, daí emana a sua liberdade. Mas ele cede-a, porque a sua soberania não é absoluta e como tal precisa de cooperar com os seus semelhantes igualmente soberanos, para poderem alcançar objectivos comuns.

A máxima universal de Kant é afinal sumarizada no que Cristo disse: “Tens de fazer ao próximo o que gostarias que ele te fizesse.” Sendo que esta máxima tem um toque pró-activo que o racionalismo de Kent não tem. A máxima do Cristo gera moral, já que moral é um comportamento.

O “imperativo categórico” de Kant é apenas uma reformulação do utilitarismo [3]. A antropologia favorece o ponto de vista utilitarista por muito que nos custe. A nossa condição animal, com o mesmo imperativo de comer ou ser comido, é a base de toda a construção moral.

O conceito de Kant de a humanidade como fim em si mesmo, é de uma presunção religiosa: A Humanidade entendida como o pináculo da criação! A evolução rebate esta postura. Somos apenas uma espécie de passagem. Encarar de outra forma é voltar ao utilitarismo, considerando que a Humanidade apenas sobrevive se a sua moral a considerar como um fim.

O respeito em virtude da racionalidade humana, exclui os malucos da esfera moral? Obriga a aceitar o postulado que só quem é racional tem moral? Ou qualquer racional adquire o estatuto de humano? O respeito é particular ao humano racional?

É inescapável que estamos sujeitos às nossas necessidades circunstanciais ou por vontades e desejos que porventura tenhamos. Portanto a Lei que impomos a nós mesmos só por coincidência obedece ao “imperativo categórico”. O nosso presente foi condicionado pelas decisões de todos antes de nós! Kant está próximo da consciência como causa última, o que até o aproxima de Amit Goswami.

Creio que a posição de Kant, é racionalizar Deus. Deus é convertido no “imperativo categórico” e tudo o que ele afirma sobre liberdade não é mais do que a submissão voluntária. Mesmo a ideia do homem não ser propriedade de si próprio, ecoa a velha ideia religiosa de sermos filhos de Deus.

Kant cai na mesma velha armadilha de fragmentar a realidade. Separando o sexo consensual do amor como se estivessem que estar ligados. É como se apenas pudéssemos tomar uma refeição quando tivéssemos fome a sério. E ainda assim comer podia ser imoral. A moralidade de Kant em especial na “declaração verdadeira, porém enganosa”, é a moral de sacristão!

A felicidade não, mas a busca da felicidade deve ser um direito.

[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Utilitarismo

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Imortalidade - Parte V



A imortalidade pela fama


Reprodução


Por último, temos de falar da imortalidade que se alcança pela realização de um propósito, por se deixar um legado.
A maioria acha que essa imortalidade se consegue pela reprodução, por ter filhos, alguém que nos lembre no futuro próximo e que depois transporte os genes para as gerações vindouras. Talvez seja realmente a única imortalidade que tem alguma hipótese. Pelo menos se os filhos tiverem filhos e por aí fora, sem nenhuma fatalidade ou opção que pare a transmissão. As mulheres em particular parecem sentir-se profundamente realizadas pelo facto de serem mães, mesmo que os seus filhos não sejam nem mais nem menos que a normalidade, sem qualquer traço de genialidade. Já o mencionamos de passagem em outros "posts" e repetimos a ideia, à evolução não importa o que resulta da reprodução, só lhe interessa que haja. Ela depois se encarregará de seleccionar o que importa. Portanto não interessa se os vossos filhos são génios ou calhaus com olhos, o que importa é que se continuem a reproduzir.
O pensamento religioso também se torna colaboracionista com a evolução quando defende que o casamento, como importante sacramento, só cumpre o propósito de Deus quando dá origem a filhos. A Bíblia por alguma razão enche páginas de genealogias que agora pouco interesse têm. Os judeus que as perseveraram, com a destruição do Templo de Jerusalém em 70 EC perderem importantes informações para sua agonia eterna. 
Se tem filhos, parabéns, há uma possibilidade que seja imortal através dos genes. Se bem que um dia a baralhação deles será tão grande que o seu contributo será muito diluído, mas é de facto melhor que nada.

Política


Alguns encaram que o serviço público pode deixá-los nos anais da história e assim obterem um lugar na memória colectiva dos homens. Para além de isso dar uma enorme trabalheira, que os concorrentes são mais que muitos e nem sempre a ideologia coincide com os lugares elegíveis e pode ser preciso fazer concessões. Mas mesmo que não faça e assuma as suas convicções é frustrante nunca ser capaz de se ir tão longe quanto se gostaria. E o legado, a recordação que se deixa em termos políticos, na maioria dos casos é uma nota de rodapé na história. Veja por exemplo quem se lembra de quem era o secretário de Tuntankhamon? Quem se importará com isso sequer, que a maioria está mais preocupada com o que os políticos do seu tempo alcançam do que com políticos do passado. Mas se for realmente excepcional nas suas realizações políticas e for bafejado pela sorte, certamente terá o seu lugar recordado por alguns anos mais para além da sua morte. Pode ser que ganhe um nome de rua e tudo! Não lhe chamaria imortalidade, mas é uma tentativa interessante.

Legado


Mas não enveredando pela política, talvez busque isso por meio de um legado artístico ou empresarial. Uma empresa bem sucedida pode levar o seu nome muitas gerações para a frente. Ainda hoje existe o nome Ford como marca de automóvel em honra ao Henry Ford que os começou a fabricar em escala industrial. Outras grandes empresas existem transportando os nomes dos seus fundadores. E como o dinheiro é uma utilidade apreciada, se for empreendedor quem sabe? Talvez a sua eternidade esteja por esse lado.
Outro será o legado artístico, e aqui este é mais arriscado porque nunca sabemos que artes a humanidade continuará a apreciar no futuro e que evolução cada uma dessas artes terá. Mas deixar livros publicados, pinturas ou esculturas realizadas, composições musicais escritas, com a dose necessária de sorte pode ser que ganhe fama e esta se prolongue no tempo. Lamentavelmente a fama nos dias de hoje é efémera, não se baseia no mérito, mas em interesses diversos e arrisca-se apesar do esforço a nunca ser reconhecido e a cair no esquecimento. Mas não desanime, porque às vezes de um longo esquecimento, alguém o (re)descobre e pode ser que ganhe ímpeto e não seja depressa esquecido. Não é a imortalidade mas pode ser melhor que nada.

Conclusão


Devem perceber que não falámos de todas as situações que nos podem levar a uma imortalidade mais ou menos longa com base em realizações. Há até quem se congele na esperança de um dia reviver. Não é bem uma imortalidade, mas uma espécie de vida em suspensão e não é garantida!
No fundo queremos todos pensar que não somos só uma brisa ou o pó no prato da balança, que um dia o futuro não nos terá e é essa antecipação que nos causa angústia. Quem ama a vida, quem tem um desejo permanente de aprender, certamente a limitação da vida humana é um empecilho aos seus desejos.
Alguns têm levado esta questão com seriedade e tentam influenciar os seus semelhantes, para que com eles entrem numa cruzada pelo rejuvenescimento e pela longevidade. É sem dúvida meritório mesmo que não sejam eles os beneficiários das tecnologias e tratamentos que sem dúvida tornarão a vida aprazível e longa. Mas cada um de nós está limitado no seu próprio tempo. Por aí não há outra solução melhor, a não ser deixar essas alpondras para as gerações futuras.
Assim, em conclusão, tudo o que podemos fazer de momento é tentativas de deixar algo de nós que reverbere no futuro e possa contribuir para que um dia a imortalidade se alcance efectivamente. Ou pelo menos que se abra como uma possibilidade para os que a queiram abraçar. Ninguém é obrigado a tornar-se imortal. 
No Grandioso Universo, quando nos libertarmos desta bola onde surgimos e evoluímos e perseguirmos as estrelas em viagens de anos-luz, então terá valido a pena o esforço de cada um de nós. Estaremos de novo na beira da praia onde antes um anfíbio saiu do mar e começou esta aventura que é agora a nossa e que agora se expande pelo Cosmos.

Enquanto a morte não chega, sejamos imortais!

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Imortalidade - Parte IV



O que é morrer?


Um tema de perto relacionado com o da imortalidade é compreender o que é a morte. E compreender isso, obriga-nos a mergulhar mais profundamente ainda, na compreensão do Universo, naquilo que lhe deu origem e o mantém. É certamente exercício para gerações!
Mas será que não podemos ter vislumbres do que será o cenário último, da verdade?
O trabalho de muitos geniais gigantes permitiu-nos chegar a um tempo em que há abundância de conhecimento. Pode não ser ainda um "conhecimento exacto" [1] no sentido pleno, mas é certamente vasto. Aliás se encararmos a Bíblia como um testemunho da divindade no contexto cultural das diversas épocas em que foi escrita e não como narrativa dos pensamentos de Deus, podemos dizer que talvez Ele esperasse que amadurecêssemos até chegarmos a um entendimento de Si tão pleno quanto fosse possível. Nem sei bem, se esse entendimento se pode alcançar enquanto espécie humana, se é preciso vir outra espécie mais evoluída e portanto mais próxima ainda da plenitude de Deus. Ou então talvez tudo o que se precise é de uma transcendência que nos permita colocar-nos num patamar em que sejamos capazes de O entender.
Alguns dentre nós têm feito este esforço de O entender pelo uso do intelecto e das ferramentas que engenhosamente inventámos para alcançar a "verdade", como foi é método científico. Outros têm pregado a transcendência do amor, sendo exemplo épico Jesus. E ao largo das baralhadas teológicas, as questiúnculas sobre o número de anjos possível na cabeça de um alfinete, todos aceitamos pacificamente que o "Cristo foi a imagem de Deus." [2]

Em termos estritamente teológicos a morte física é deixar nas mãos de Deus a possibilidade de voltar a viver novamente, independente das questões se temos uma alma imortal e se alguma coisa acontece ou não noutro domínio. Jesus assemelhou a morte a um sono profundo[3] e creio que todos podemos concordar com essa sua afirmação, mesmo os cépticos e os não crentes, sendo a diferença que para estes nunca se acorda de tal sono e para os crentes há a esperança que se seja despertado.

O que nos diz o conhecimento científico? Façamos uma pequena ressalva: O conhecimento científico é só uma aproximação do que será a verdade. Ele está condicionado à nossa capacidade de tecermos hipóteses que se aproximem dos factos na interpretação correcta. É uma relação delicada esta entre os factos, que permanecem e estão sempre lá, e a interpretação dos mesmos. Há a necessidade da filosofia que suscita as questões e traz sobre os factos um olhar novo. Há que ter a ousadia dos poetas e dizer o que nunca foi dito, na intuição que permite adivinhar a realidade que ninguém mais viu. É um espectáculo de magia de longa duração, onde a realidade se revela sempre mais fantástica do que a nossa imaginação, tão humana e tão pequenina! Não podia ser de outro modo, num cosmos medido em milhões de anos-luz. Realmente para compreendermos o Universo bem que precisávamos de alcançar a imortalidade. Sim, é uma íntima relação entre a imortalidade e o conhecimento. É só por meio de artifícios como a escrita que conseguimos fintar esta ignorância que ocorre com cada morte.

O que sabemos sobre a morte?


Realmente sabemos muito pouco. Se não houver inviolabilidade do tempo, a morte pode não existir, já que passado, presente e futuro não serão absolutos. As dificuldades em definir o tempo, levam alguns a pensar que é uma construção, talvez como o éter luminífero foi em tempos, e que deva ser descartado. "O tempo não é um aspecto fundamental da realidade." Einstein em 1955 na morte do seu amigo Michele Besso escreveu: "‘Agora ele partiu deste estranho mundo um pouco à minha frente. Isto não significa nada. Pessoas como nós, que acreditam na física, sabem que a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma teimosa e persistente ilusão.’ [4]

A ser verdade isto remete para outra questão: importará assim tanto viver para sempre? 


"Será que o nosso desejo de viver, não é apenas um truque do gene egoísta para que nos reproduzamos e cuidemos da descendência?... A resposta depende do que acontece depois que morremos." [5] 
Se ao morrermos formos para um lugar melhor, como muitos acreditam que seja possível, então morrer nem é um mau negócio. Já se ao morrer se for parar ao inferno ou reencarnar como um porco, talvez valha a pena tentar prolongar o tempo em que por cá se anda como humano.
Se alcançar um lugar melhor após a morte depende da fé e de cumprir certos requisitos, então não será um drama quando se perde a fé ou se peca (não se cumprem os requisitos)? Mais valia ter morrido mais cedo, antes dessa perda de fé ou do cometer pecado!
Em boa medida, viver para sempre ou não, depende daquilo em que acreditarmos.

Há contudo a hipótese de que ao morrer acabe tudo.


O que traz outras questões: como viver se tudo acaba? E já que levar uma vida feliz não é sinónimo de levar uma vida com sentido, então que escolhas devemos fazer?
Uma vida sem sentido deprime-nos, o que mostra que ser feliz não deve ser o único objectivo na vida.
Se a felicidade resulta da satisfação dos nossos desejos, uma vida com sentido não precisa disso.
A felicidade é momentânea, sentida no "agora", já o sentido da vida tem que ver com o futuro. Quem vive para o presente, para ser feliz, carece de profundidade. O sentido da vida consiste em estabelecer uma narrativa coerente que une passado, presente e futuro, uma história de vida. Mas o sentido da vida não contribui para a felicidade, embora possa dar essa ilusão.

Os generosos embora possam sentir que a vida ganha sentido, não ganham em felicidade. Talvez seja por isso que o gene é egoísta. Tudo o que nos dá felicidade é egoísta. Mas tudo o que é expressão de nós mesmos, definir-se, construir uma boa reputação está ligado com o sentido da vida.
Atribuir significado, sentidos, é o que nos permitiu sobreviver através da gregaridade. Usamos a linguagem, as palavras como ferramenta que nos conecta uns aos outros e isso permite a nossa sobrevivência. Do sentido das palavras, enquanto comunicação, passamos a enquadramentos mais vastos. A democracia vai nesse sentido.
"O sentido é mais estável que a emoção, e assim coisas vivas usam o sentido como parte da sua demanda para alcançar estabilidade." [6]


Como a vida ganha sentido?



A solidão não traz nem felicidade nem sentido à vida.
A vida carece de propósito. O primeiro propósito vem da natureza: sobreviver e reproduzir-se. A segunda fonte de propósito é a cultura. A terceira fonte são as nossas escolhas.

A necessidade de um sentido é que ele confere valor. É uma propriedade moral, uma definição de bom e de mau. Não estamos aqui muito longe da história contada no Gênesis: "Pois Deus sabe que, no mesmo dia em que o comerem, os vossos olhos irão abrir-se e vocês serão como Deus, sabendo o que é bom e o que é mau.” [7] É aqui que sentido se torna social, já que o "bom" e o "mau" é uma questão de consenso social, pelo menos daquele em que nos inserimos.
Outra necessidade de sentido vem da eficácia. Objectivos e valores que não levam a lado nenhum, importam? Todos queremos alcançar alguma coisa com as nossas vidas.
Por último a necessidade de sentido vem do amor-próprio, da forma como nos vemos a nós mesmos e nos valoramos.

"Uma vida terá sentido se responder às quatro questões de propósito, valor, eficácia e amor-próprio. São estas questões, não as respostas, que fortalecem e unificam." [6]

Talvez a vida não passe de uma interrogação permanente.

Morrer é quando já não fazemos mais perguntas, independentemente se através da morte encontramos ou não,  todas as respostas.

[1] 1 Timóteo 2:4
[2] 2 Coríntios 4:4
[3] João 11:11: Depois de dizer isto, ele acrescentou: “O nosso amigo Lázaro adormeceu, mas eu vou lá para o acordar."
[4] https://aeon.co/ideas/there-is-no-death-only-a-series-of-eternal-nows 
[5] https://aeon.co/essays/is-a-long-life-necessarily-a-good-life
[6] https://aeon.co/essays/what-is-better-a-happy-life-or-a-meaningful-one 
[7] Gênesis 3:5